domingo, 4 de novembro de 2007

Capítulo 2 – Poesia: A geração do mimeógrafo

A consolidação de uma indústria cultural é indispensável para o poder tecnocrático; através dela, se difundem a idéia de uma sociedade de especialistas, junto com os valores de integração organizacional, modernização, eficiência, racionalidade e necessidade. O totalitarismo tecnocrático se baseia em técnicas subliminares, em grande parte, realizadas através da indústria cultural. O ‘novo autoritarismo’ da tecnocracia tem um poder absorvente: a capacidade de proporcionar satisfação de uma maneira que gera submissão e depaupera o protesto.

No Brasil, uma indústria cultural consolidada pode ser observada a partir do final dos anos 60, durante o período da ditadura militar. Esta consolidação foi muito importante para assegurara e justificar um dos aspectos mais violentos da tecnocracia brasileira: a ditadura. Carro-chefe deste período, a televisão passou a ser parte da vida dos brasileiros que iam se integrando numa única identidade nacional. A produção de bens simbólicos era feita em escala industrial, resultando em produtos de massa muito bem acabados, mas também necessitando de grande quantidade capital para a produção.

Aliada à censura legalizada pelo tenebroso A.I.5, estava a capitalização crescente do mercado editorial brasileiro; fatores responsáveis por marginalizar escritores. Alguns poetas passaram a “caminhar conscientemente à margem do mercado tradicional.”[1] Esta nova opção, marcada por uma recusa ao Sistema e às novidades da indústria cultural, se realizava de forma artesanal, com o artista envolvido em todas as etapas da produção do livro.

(...)a impressão, o projeto gráfico e a distribuição fora das grandes editoras e livrarias, o controle de todo processo de produção do livro pelo autor, a venda realizada pessoalmente em livrarias pequenas, bares, teatros e cinemas.[2]

Chico Alvim, Cacaso, Chacal, Paulo Leminski: os melhores exemplos de poetas que praticavam a “literatura do eu”, como definiu Süssekind (2004). O conteúdo era o “ego malandro” de cada poeta, a transformação de elementos cotidianos em poesia, revelando um mundo de intimidades que parece ser do autor, mas que também poderia ser de qualquer um, criando assim uma aproximação com o leitor. Não importando uma elaboração literária, a composição servia uma expressividade neo-romântica. A forma era tosca, livrinhos mimeografados com qualidade muito inferior ao alcançado pelo mercado editorial de então. Somente em 1976 a produção destes poetas é reunida numa antologia 26 Poetas Hoje, editada por Heloísa Buarque de Hollanda com enorme sucesso. A partir de então, os textos daqueles autores deixaram de ser potencialmente conhecidos por cerca de 500 leitores “conhecidos” para dez, quinze mil pessoas. Antes disso, porém, a cumplicidade era muito maior, principalmente pelo limite do número de leitores.

A sensação do leitor é meio a de quem violasse correspondência alheia ou abrisse de repente o diário de alguém e começando a lê-lo, percebesse estranhas semelhanças com o seu próprio cotidiano não escrito, vivido apenas.[3]

A associação entre poetas produziu várias coleções, entre elas Frenesi, Vida de Artista e Nuvem Cigana. Frenesi é constituído por poetas que tomaram parte nos debates políticos dos anos 60, mas passaram rever suas posições, mas a maior parte dos integrantes era ligada ao Sistema, incluindo Antonio Carlos de Brito, vulgo Cacaso e Roberto Schwarz. Já Vida de Artista têm a presença de poetas de uma segunda geração que não participou dos debates dos anos 60 e só toma parte na produção cultural nos anos 70, durante a ditadura. Chacal estava entre eles. Já a coleção Nuvem Cigana reunia apenas poetas mais jovens. Segundo Hollanda (2004), para estes poetas a experiência do “sufoco” não é mais objeto de reflexão e passa a ser experimentado como sensações imediatas, coincidindo com a “nova estética da indiferença”. A publicação oficial do grupo Nuvem Cigana chamava-se Almanaque Biotônico Vitalidade e assim apresentava suas indicações de uso em 1976: “contra a inércia/ contra a lei da gravidade/ contra a contrariedade/ contra marcar bobeira/ contra cultura oficial/ contra a cópia/ a favor da liberdade/ contra o irremediável”[4]. Enfim, contracultura.

Entretanto, nem todos os poetas marginais passaram pela experiência do mimeógrafo e das publicações coletivas surgidas de associações entre poetas, como era comum no Rio de Janeiro. Paulo Leminski, poeta curitibano, é considerado um símbolo da contracultura no Brasil, não só pela sua obra, altamente revolucionária, mas também pelo seu estilo de vida, totalmente “desbundado”. Apesar disto, Leminski, nunca precisou mimeografar seus livros e, apesar de várias parcerias em suas produções, principalmente na parte musical, também nunca participou de um grupo coeso como, por exemplo, foi o Nuvem Cigana. Isto aconteceu, porque a cidade de Curitiba já abrigava um avançado parque gráfico, além disso, “O Paulo era apaixonado pelo avanço da tecnologia e da publicidade.”[5] Portanto, Paulo Leminski não pode ser classificado como “poeta do mimeografo”, pois, de fato, nunca utilizou um.

Mesmo assim, o poeta curitibano tem lugar reservado nesta pesquisa por ser um importante representante da contracultura brasileira e um dos melhores exemplos de “poeta maldito” que se tem nos anos 70. Leminski deixou o cabelo e barba crescerem, parou de escovar os dentes, usou drogas, principalmente maconha e ácido, além de muito álcool, e viveu boa parte da vida sem documentos. No fim foram os excessos constantes que levaram-no a morte, aos 44 anos, vítima de cirrose hepática.[6] A explicação desta morte precoce foi dada pelo próprio Leminski, em uma música de sua autoria, “Este mundo, um hospício, fugi pelos furos do vício”[7]. Mesmo assim explicada, a rapidez da trajetória deste brilhante poeta não é menos chocante; assim como sua obra que, ainda hoje, se mantêm viva, tanto pela modernidade, quanto pela qualidade.

A obra-prima de Leminski é Catatau, o primeiro livro do poeta, um romance-idéia possuidor de uma prosa experimental altamente influenciada por James Joyce, de qualidade indiscutível, mas de difícil leitura, por causa de sua grande complexidade. Já a obra literária posterior dele é composta principalmente de poemas; estes, apesar de em alguns momentos revelarem o que Süssekind (2004) chamou de “literatura do eu”, como no poema Um homem com uma dor[8], onde o poeta revela o estado frágil de sua saúde, são mais marcados pela influência da poesia concreta e do Hai Kai (tipo de poesia japonesa). O resultado é uma poesia sincera e veloz, capaz de pegar o leitor de surpresa, como um golpe de judô.

2.1 Rebeldes laureados

Com o tempo, e o fim da ditadura militar, a maioria dos poetas mencionados neste capítulo foi ganhando o reconhecimento da sociedade. Dos poetas marginais alguns foram presos, outros tiveram o rápido fim tão comum ao espírito da contracultura, mas os que viveram foram ganhando os louros de uma sociedade cada vez mais democrática e aberta para aceitar diferentes formas de expressão e pensamento; além da liberdade para criar arte. E os louros não foram poucos; Gilberto Gil, por exemplo, atualmente é nada menos do que ministro da cultura do Governo Federal. O fato é que a produção poética no Brasil, desde então, é muito marcada por estes ícones contraculturais. Muitos jovens artistas brasileiros hoje se espelham nestes mestres, não importando o quanto a ditadura possa ter tentado fazer para impedir certas formas de pensamento mais alternativas.

Passados os anos necessários para baixar a poeira do presente é possível observar como um todo as gerações que compuseram o período aqui estudado e então, se torna evidente tratar-se de uma vanguarda; isso não só na esfera da poesia, mas também na produção editorial, feita independentemente, muitas vezes com a ajuda de mimeógrafos ultrapassados. Alguns poetas se uniram, outros percorreram trajetórias mais solitárias, muitos artistas se conheceram, depois de conseguir mais prestígio, e fizeram amizades e parceiras; porém o fato mais importante é uma certa identificação instantânea entre os artistas contraculturais. Talvez a causa tenha sido a repressão e o “sufoco” causado pelos tempos sombrios do regime militar.



[1] SÜSSEKIND, Flora (2004).

[2] Idem.

[3] Ibdem.

[4] Apud HOLLANDA, Heloisa Buarque de (2004).

[5] Anexo.

[6] VAZ, Toninho (2005).

[7] Anexo.

[8] LEMINSKI, Paulo (2000).

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