domingo, 4 de novembro de 2007

Introdução

Apesar de muito já ter sido dito sobre a contracultura, ela ainda não foi suficientemente estudada, e, se o foi, pode não ter sido observada por todos os ângulos possíveis. A contracultura, que nasceu nos Estados Unidos, ao chegar em terras tupiniquins, com alguns anos de atraso em relação aos países desenvolvidos, se misturou com os movimentos culturais que se deram e se davam no Brasil de então, principalmente a arte engajada e o tropicalismo. A rápida sucessão dos movimentos, devida, em parte, à instabilidade política da região, e a convivência de elementos dessas três vertentes culturais dificultam a apreensão dos contornos da contracultura brasileira.

Portanto, para entender a contracultura, não seria possível apenas observar a história de nossa nação sem também observar a contracultura desde de seu nascimento em terras estrangeiras. Ou seja, primeiramente devemos definir o conceito de contracultura, para só depois, nos capítulos que seguem esta introdução, aplicar o conceito previamente definido nas expressões artísticas e comportamentais mais significativas e em algumas figuras emblemáticas da contracultura no Brasil. São elas: O comportamento de recusa ao sistema, de cair fora e levar um estilo de vida hippie e que foi chamada no Brasil de “desbunde”, a poesia produzida por artistas que se recusavam a entrar no esquema da indústria cultural, por uma geração que ficou conhecida por sua poesia marginal e seus livrinhos artesanais produzidos em mimeógrafos; e o jornalismo contracultural impulsionado pela necessidade de uma impressa alternativa decorrente da censura.

As expressões artísticas e comportamentais tiveram em comum o fato de não necessitarem de muito capital, apenas de um circuito alternativo; tudo que produziam, tirando algumas exceções, era de maneira artesanal. O estilo de vida hippie era mantido sem muito dinheiro. Este fato também é comum nas expressões clássicas da contracultura através do mundo, e aponta para o traço definitório do conceito de contracultura: ela é, como diria Marcuse em seu Prefácio Político de 1966 para Eros e Civilização (1968[1966]), a possibilidade de “inverter o rumo do progresso” e “romper a união fatal de produtividade e destruição, de liberdade e repressão”. É, portanto uma recusa ao Sistema e à tecnocracia, no sentido dado por Roszak (1972[1969]): a sociedade de especialistas, cujos valores definem as sociedades desenvolvidas, sejam elas capitalistas ou socialistas, e cujos métodos de dominação se aperfeiçoam a ponto da força física não ser necessária; nestas sociedades a dominação é feita principalmente na esfera da criação de subjetividade e do desejo. Ou seja, a contracultura se caracteriza, tanto na esfera comportamental quanto na artística, pela sua oposição ao Sistema e aos valores tecnocráticos e científicos que servem de base para a civilização ocidental, mas também pela apresentação de novas formas de sociedade.

Para melhor entender a relação entre cultura e contracultura, é interessante utilizar a analogia da cultura de massa produzida pelo Sistema como sendo a correnteza de um rio, despejando bens simbólicos em toda massa consumidora, impondo autoritariamente seus valores. Este é o Mainstream, a corrente central. Paralelamente a esta corrente existe uma contra corrente, a contracultura, criticando os valores da primeira. A localização desta contra corrente cultural é à margem da sociedade, seus atores dificilmente têm voz nos meios de comunicação e, por isso, seus valores são marginalizados pela sociedade em geral.

Todos os autores estudados concordam que o nascimento da contracultura se dá com a publicação do poema “Howl”, de Allen Ginsberg (1956). Ginsberg era uma das mais expressivas figuras do que ficou conhecido, por conta de uma frase dele mesmo, como a beat generation. Ele foi praticante de filosofias orientais e sua presença era aplaudida mesmo que não pronunciava palavra nenhuma. Os beats foram os precursores ideológicos dos hippies, que ficaram bem mais conhecidos e só surgiram nos anos 60; ambas as tribos eram adeptas da filosofia do Drop Out, ou seja, ao invés de tentar lutar por mudanças no sistema, preferiam cair fora e “curtir a vida” como bem entendessem, bem longe dos que poderiam os incomodar ou mais, mas sem dar importância às críticas e preconceitos dos “caretas”, na orla boêmia, aonde o conceito de normal, pouco a pouco, transformou-se, a ponto do “careta” ser mal-visto e não o jovem beat ou hippie.

Entretanto, não se pode negar que, no plano das idéias, a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre foi uma antecipação daquilo que a contracultura veio propor na esfera comportamental. Sartre e sua mulher, Simone de Beavoir, tinham um comportamento libertino capaz de escandalizar a Europa bem antes das festas de amor livre realizadas pelos hippies nas décadas seguintes. A filosofia sartriana de simplesmente existir, livre e totalmente responsável por essa liberdade, ficou famosa a ponto de virar a popular marchinha de carnaval Chiquita Bacana. Afinal, se seguir uma filosofia existencialista é mesmo fazer aquilo que manda o coração, como manda a letra de 1949 escrita por Alberto Ribeiro e João de Barro, mais conhecido como Braguinha, o surgimento dos hippies poderia ter sido visto como a concretização dos ideais do francês Jean-Paul Sartre.

A contracultura se firmou em cima do tripé sexo, drogas e rock´n´roll e assim que se consolidou ficou clara a importância do antagonismo entre gerações. Uma dualidade jovem / não-jovem foi muito importante para a definição do que era a contracultura, foi então que a juventude passou a se organizar como um poder político autônomo. A geração de pais, presa a própria concepção de mundo, talvez nunca pudesse entender o que os jovens queriam e seus filhos, no fundo, sabiam disto; esse foi o principal motivo do antagonismo impulsionado por ambos os lados. Sobre a música dos anos 60 e alguns de seus maiores ícones, Rolling Stones, Beatles e Bob Dylan, existem duas constantes: a busca por uma arte de autor, mesmo se houver risco de desagradar ao público; e o efeito de drogas ou misticismo transformando a arte. Esta semelhança entre estes três símbolos máximos da música da contracultura é desprendida da observação das trajetórias destes músicos desenhada por Pereira (1986). Já os mentores da contracultura são mais bem desvendados por Rozsak (1972 [1969]). Um a um, ele revela-os: o conceito de uma sociedade doente de Marcuse e Brown; Ginsberg poeta e místico; Allan Watts, orientalista; Huxley; Leary e a sua Liga para Descoberta Espiritual; Ken Kesey e o teste do ácido. Rozsak, na procura pelos pensadores da contracultura e revela a raiz desta: aquilo ao qual ela é contra: a tecnocracia. E, como ele mostra, são variadas as expressões de oposição à Tecnocracia.

Finalmente, houve dois momentos que influenciaram um milhão de jovens através do globo, por sua contestação de valores, rebeldia e uma nova forma de contestação: Woodstock e o Maio de 68 na França. O primeiro marcou o lado lúdico do movimento e continua sendo visto com saudosismo; muitas festas já tentaram reviver o espírito do festival. O evento na França, porém, teve influência redobrada para a contracultura tupiniquim, pois muitos intelectuais brasileiros estavam, por vontade própria ou não, exilados na Europa e puderam assistir aos efeitos demolidores do anarquismo francês, ou como diriam alguns dos próprios participantes da revolta, “marxismo tendência Groucho”, em referência ao comediante Groucho Marx.

Depois de passados 60 anos do seu nascimento, em 1956, com o poema “Howl”, é possível observar a contracultura totalmente absorvida pela cultura de massa, transformada em mais um produto para se escolher, entre tantos outros. O motivo é simples: a rebeldia, como descobriram os empresários, pode ser um produto que vende muito bem. Ou talvez o que exista seja mesmo só uma capa rebelde ou uma cópia da rebeldia feita pra se diferenciar de outras versões mais certinhas e vender mais, que nem a novela dos riquinhos rebeldes. O mais provável, porém, é que os tecnocratas tenham descoberto como vender rebeldia em pequenas doses para impedir, em novas gerações de jovens, o aparecimento do desejo de revolucionar o mundo. Atualmente, a contracultura está finalmente integrada ao Sistema e, talvez por isso mesmo, esteja sumida. Muitos países já legalizaram o consumo de drogas e até as fornecem, em casos médicos. Assim como previa Rozsak, essa legalização não acabou com a tecnocracia nestes países. Apesar de tantos sinais atestando o óbito da contracultura, há quem ache que ela ainda está viva por aí, talvez como uma atitude rebelde, ou simplesmente escondida no espaço virtual da Internet.

Se ainda existe ou não, o fato é que a contracultura existiu no mundo e também aqui, no Brasil. Para entendê-la vamos esquadrinhar três símbolos. Lembrando que a contracultura é, principalmente, um fenômeno comportamental, vamos estudar o “desbunde” no primeiro capítulo desta pesquisa. Tentando entender os jovens que resolviam abandonar os estudos para, na opinião de alguns, cair na “vagabundagem” das “dunas do barato” e de outros locais de rebeldia, sem nem querer pensar em pegar em armas para lutar contra a ditadura. No segundo capítulo trataremos dos poetas marginais; uma geração influenciada pelos beats e que, longe da indústria cultural, faziam seus livros artesanalmente. O último capítulo é dedicado aos jornalistas da imprensa contracultural, responsáveis por boa parte da divulgação da ideologia do movimento.

Para realizar esta pesquisa foram necessárias muitas horas de leitura e idas a bibliotecas (algumas particulares). Quero agradecer aos autores estudados e aos entrevistados, Dau Bastos, Toninho Vaz, e Juliano Serra. Não poderia deixar de agradecer aos professores Marcos Dantas, pelo acesso ao acervo particular e pelas técnicas de pesquisa, e Leonel Aguiar, orientador desta monografia. Por fim, agradeço à minha mulher.

Um comentário:

Mônica Ash disse...

olá!
li sua monografia e adorei! sou estudante de moda e estou escrevendo sobre contracultura e a cultura da aparência no brasil nos tempos da ditadura e sua monografia é um excelente complemtento para a minha pesquisa. acredito que nem tudo foi dito dito ou escrito sobre a contracultura e mtos questionamentos aínda podem ser levantados.

agradeço por ter disponibilizado a sua tese online.

abraço.