quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Contracultura e modernismo: relações rebeldes

APRESENTAÇÃO

Durante a minha graduação, estudei o período da contracultura e suas manifestações; tema que sempre me interessou. Durante as aulas de Estética e Comunicação do curso de especialização em jornalismo cultural da UERJ, ao estudar a arte modernista do início do século XX, me deparei com a seguinte hipótese: a contracultura é uma última manifestação de traços característicos do modernismo. Tal hipótese apoiada nos conceitos de modernidade e pós-modernidade tal como foram apresentados por ANDERSON[1], GIDDENS[2] e JAMESON[3] será testada neste estudo, com o objetivo de chegarmos a um entendimento mais profundo e preciso sobre a ligação deste dois movimentos.

INTRODUÇÃO

As expressões contraculturais clássicas[4] através do mundo apontam para o traço definitório do próprio conceito de contracultura: ela é, como diria MARCUSE em seu Prefácio Político de 1966 para Eros e Civilização (1968[1966]), a possibilidade de “inverter o rumo do progresso” e “romper a união fatal de produtividade e destruição, de liberdade e repressão”. É, portanto uma recusa ao Sistema e à tecnocracia, no sentido dado por ROSZAK (1972[1969]): a sociedade de especialistas, cujos valores definem as sociedades desenvolvidas, sejam elas capitalistas ou socialistas, e cujos métodos de dominação se aperfeiçoam a ponto da força física não ser necessária; nestas sociedades a dominação é feita principalmente na esfera da criação de subjetividade e do desejo. Ou seja, a contracultura se caracteriza, tanto na esfera comportamental quanto na artística, pela sua oposição ao Sistema e aos valores tecnocráticos e científicos que servem de base para a civilização ocidental, mas também pela apresentação de novas formas de sociedade.

Esta recusa foi vista com muita esperança, por estudiosos como ROSZAK[5]. “Se fracassar a resistência oferecida pela contracultura, creio que nada nos restará senão aquilo que antiutópicos como Huxley e Orwell previram”. Infelizmente, a esperança se revelou ingênua e a chama revolucionária presente no Ocidente desde o modernismo finalmente se apagou. A situação atual é bem definida pelo jornalista Toninho Vaz[6]:

Não existe mais necessidade e nem possibilidade de movimentos de contracultura. Pelo contrário, a época é de globalização. O mundo de George Orwell chegou. Somos todos “replicantes” e Deus está morto. O mundo e a natureza selvagem já estão no catálogo virtual do homem, que continua rompendo os espaços das galáxias. Diante disso, você pode se descabelar ou apenas ler um poema de Walt Witman. Vai depender da sua sensibilidade.

Muito já foi dito sobre a contracultura, mas ela ainda não foi suficientemente estudada, e, se o foi, pode não ter sido observada por todos os ângulos possíveis. As relações desta com o altamente prestigiado modernismo do início do século XX.

DESENVOLVIMENTO

Apesar de atualmente a ingenuidade de quem acreditou numa ou noutra mudança ser evidente, na época não era e, para entendermos melhor a proximidade entre modernismo, devemos utilizá-la como uma das principais chaves de compreensão. Afinal, uma das três coordenadas para o modernismo apresentadas por ANDERSON é justamente a proximidade imaginativa da revolução. Ao utilizarmos estas coordenadas para analisar não o modernismo, mas a contracultura, necessitaremos de alguns ajustes e então conseguiremos evidenciar semelhanças estruturais entre os dois movimentos.

Tratemos primeiro da proximidade imaginativa da revolução social. Enquanto no início do século uma revolução socialista parecia não apenas viável, mas também louvável; depois da metade do século a situação estava bem diferente. No mundo polarizado pela Guerra Fria os defeitos de ambos sistemas se evidenciavam e uma revolução social era quase sempre descartada. O movimento contracultural desejava mudanças sim, mas estas mudanças estavam na esfera dos direitos civis, liberdades individuais, pacifismo e estilo de vida; ou seja, na esfera da micropolítica, ou “política do quotidiano”. Além disso, a Guerra do Vietnã e as várias ditaduras na América Latina eram inimigos bem reais; vencê-los através do pacifismo (nos Estados Unidos) ou da luta armada (na América Latina) seria sem dúvida uma revolução de peso. Como sabemos, nenhuma das duas se concretizou. Enquanto atualmente poucos acreditam em revolução em face da vitória do capitalismo e da ausência do que possa substituí-lo; na época da contracultura havia muito pelo que lutar e, ao menos nas mentes, a revolução era possível.

Vamos à segunda coordenada; academicismo muito forte. Se não podemos ver uma alta cultura tão forte em comparação com período anterior e temos em maior evidencia a cultura de massa, vemos uma maior popularização do sistema de ensino universitário, responsável por levar educação de nível superior à classe média. Tal popularização levou conhecimento antes restritos à elite para vastas parcelas da população mundial e, com este conhecimento foi embasada a contracultura. A dialética academicismo muito forte / novas formas de arte fora substituída, na segunda metade do século por outra um tanto mais simples: jovem / não-jovem. Ficou clara a importância do antagonismo entre gerações e foi então que a juventude passou a se organizar como um poder político autônomo.

Por fim, tratemos do surgimento de novas tecnologias. Indiscutivelmente a mais importante tecnologia do momento é a televisão. Este aparelho é responsável por finalmente consolidar a consolidação do inconsciente humano. Uma máquina de prazer capaz de moldar as mentes desde a infância. Tão forte era sua influência que praticamente toda a arte produzida no período era influenciada ou fazia referência de alguma forma à T.V. e ao seu universo de sonho. Entretanto, a massificação e o código de símbolos foi sendo subvertido; a isso se deve o forte caráter popular na arte contracultural. Em menor escala, a guitarra elétrica teve importância, afinal possibilitou o Rock 'n' Roll e a propagação de suas idéias através de letras de música.

Uma outra tecnologia teve um impacto transformador tanto no mundo real, quanto no imaginário. A destruição de Hiroshima por uma artefato atômico além de acabar definitivamente com a II Guerra Mundial colocou o fim do mundo, ou pelo menos sua possibilidade, à distância de um botão. O apocalipse nunca esteve tão perto das mentes e dos corações humanos. Tal proximidade com o fim levou a um sentimento generalizado de niilismo e, por sua vez, o niilismo junto com a abundância econômica do período pós-guerra foram fundamentais para a gestação da contracultura.

É na América, nesse peculiar nexo de niilismo e jovialidade, otimismo tecnológico e poder militar excessivo, um lugar onde expectativas e desejos que tinham sido cultivados ao longo de muitas vidas estavam começando a ficar disponíveis em questões de momentos, a terra do jazz e da algazarra, que começa a história da contracultura na segunda metade do século XX[7].

Podemos constatar, portanto, os mesmos fatores formadores do modernismo no momento da contracultura, apesar das diferenças observadas. Vejamos mais de perto o nascimento deste movimento. Todos os autores estudados concordam que o nascimento da contracultura se dá com a publicação do poema “Howl”, de GINSBERG, Allen (1956). GINSBERG era uma das mais expressivas figuras do que ficou conhecido, por conta de uma frase dele mesmo, como a beat generation. Ele foi praticante de filosofias orientais e sua presença era aplaudida mesmo que não pronunciava palavra nenhuma. Os beats foram os precursores ideológicos dos hippies, que ficaram bem mais conhecidos e só surgiram nos anos 60; ambas as tribos eram adeptas da filosofia do Drop Out, ou seja, ao invés de tentar lutar por mudanças no sistema, preferiam cair fora e “curtir a vida” como bem entendessem, bem longe dos que poderiam os incomodar ou mais, mas sem dar importância às críticas e preconceitos dos “caretas”, na orla boêmia, aonde o conceito de normal, pouco a pouco, transformou-se, a ponto do “careta” ser mal-visto e não o jovem beat ou hippie.

Assim como tantos, GINSBERG vivia numa busca hedonista. Sem se preocupar com convenções de sua época, ou mesmo o bom senso, o poeta era um rebelde e procurou sua visões extáticas de maneira não- convencional com a ingestão de alucinógenos, estudos budistas; além de ser homossexual. Usamos GINSBERG como exemplo, mas poderíamos utilizar muitos outros, alguns até mais dramáticos, como Janis Joplin, Jimmi Hendrix ou Jim Morrison; todos morreram jovens e devido ao uso excessivo de entorpecentes. O poeta Beat viveu bem mais, até seus 70 anos. Tais excessos são o lado negro da contracultura, o calcanhar de Aquiles responsável pela derrocada final. Hoje não há profetas de drogas, como Timothy Leary ou Ken Keasey, em seus lugares, perigosas quadrilhas de crime organizado.

(...) a contracultura é freqüentemente acusada de abrir o espaço para sua própria cooptação: sua ética do prazer é vista não como resistência senão como "hedonismo", e portanto como expressão da lógica do capitalismo tardio e seu subseqüente marketing de estilos de vida.

Explicou ADELMAN com perspicácia. Entretanto, é importante observar não se tratar da contracultura ter aberto as portas para um estágio avançado de capitalismo ou não; afinal seria ingenuidade creditar tais mudanças a um movimento restrito como foi a contracultura. Tal confusão é facilmente compreensível: atualmente é possível comprar “pastiches” da contracultura em bancas de jornal ou mesmo sem sair de casa, através da internet. Na época os artistas não visavam o mercado e a arte era em geral autoral. Além disso, muitas vezes o mercado era evitado e substituído, em geral, por mercados alternativos. A cooptação e reprodução do hedonismo presente no movimento não coube aos seus participantes e foi feita justamente por quem eles combatiam.

Talvez uma absorção pela indústria cultural possa desvirtuar a essência de um movimento. Muitos autores estudados apontam que o movimento alternativo encerrou seu ciclo histórico, por conta da comercialização dos valores contraculturais tão comum na atualidade. Entretanto, a absorção seja, além de inevitável, muito esperada. Foi exatamente esta a afirmação de Jorge Mautner, poeta da contracultura. Já em 1972 ele disse, em uma entrevista para o jornal Bondinho, ser uma reforma cultural a inserção da contracultura na cultura dominante, trazendo, assim, a atenção não para as derrotas, mas para as vitórias deste movimento. Quem explica é o próprio Mautner: “Se é inevitável essa absorção, vamos então fazer com que essa absorção seja feita de modo a talvez preservar o que seja, o que mereça ser preservado, o que é a essência da coisa”. Aparentemente não foi o que aconteceu, ao invés de preservada o essencial, preservou-se o periférico, por exemplo, o hedonismo.

Voltemos às relações entre modernismo e contracultura; ambos movimentos se caracterizaram por uma atitude rebelde, salvo algumas exceções, por exemplo, o Futurismo, aliado do Estado Fascista na Itália. Porém, enquanto os primeiros se rebelavam contra ordem sociais pré-modernas ou os horrores da guerra; aos segundos coube o medo da bomba e a repressão política das ditaduras de direita ou esquerda e do macarthismo. “O hipsterismo floresceu na própria ansiedade nuclear (...). A possibilidade de um apocalipse instantâneo criava uma desculpa perfeita para fugir das responsabilidades (...). O Hipster estava livre para viver o momento[8]”.

Durante a segunda metade do século XX não houve uma multiplicidade tão rica de obras de arte e estilos estéticos, em comparação ao início do mesmo século. Entretanto, arte de alta qualidade e ousadia foi feita no período deixou-se um legado ainda hoje influente na cultura mundial. No campo da estética a principal estilo foi a vigorosa arte Pop, criando desde a década de 50 uma arte capaz de absorver e subverter tudo produzido de uma forma ou outra pela indústria cultural. “Ao aproximar arte e design comercial, o artista borra, propositadamente, as fronteiras entre arte erudita e arte popular (...)[9]”.

Por incorporar os elementos de consumo na arte, é considerada pós-moderna. Fato que a coloca em um campo diferente do da contracultura, mas ainda assim, serve para ilustrar a criatividade artística do período tratado. Além disso, não foi o único movimento artístico existente então. O expressionismo abstrato e o action-panting de Jackson Pollock são exemplos de arte vinculada aos valores modernistas, não aos pós-modernistas, como era a arte Pop.

Um dos movimentos artísticos mais importantes dentro da contracultura foi o happening. O termo em si foi cunhado no final dos anos 50 por Allan Kaprow; diz respeito a um misto de artes plásticas e cênicas de difícil definição. O objetivo era induzir repostas criativas da platéia a partir de seqüências de eventos não-lineares e a baixa necessidade de recursos ajudou em sua propagação. JAMESON evidencia o nível de importância ao relatar “(...) a emergência dos chamados happenings, discutidos por todos, desde Marcuse até os suplementos dos jornais de domingo[10]”. Entretanto, essa importância não se limita à abundância de comentários, é estética:

(...) os happenings levam essa situação ao seu extremo ao proclamar a eliminação completa da desculpa do texto e oferecer um espetáculo de pura representação, enquanto também procuram paradoxalmente abolir as fronteiras e as distinções entre a ficção e o fato, entre a arte e a vida[11].

E também é política.

As inovações teatrais se posicionaram então como um gesto simbólico de protesto estético, como inovação formal apreendida nos termos de um protesto político e social, acima e além dos termos especificamente estéticos e teatrais em que tais inovações eram expressas[12].

Sobre a música dos anos 60 e alguns de seus maiores ícones, Rolling Stones, Beatles e Bob Dylan, existem duas constantes: a busca por uma arte de autor, mesmo se houver risco de desagradar ao público; e o efeito de drogas ou misticismo transformando a arte. Esta semelhança entre estes três símbolos máximos da música da contracultura é desprendida da observação das trajetórias destes músicos desenhada por PEREIRA (1986). As expressões artísticas contraculturais tiveram em comum o fato de não necessitarem de muito capital, apenas de um circuito alternativo; tudo que produziam, tirando algumas exceções, era de maneira artesanal.

CONCLUSÃO

Como pudemos observar, as relações entre o modernismo do início do século XX e a contracultura da segunda metade do mesmo século são várias e profundas. As estruturas e coordenas para a formação de ambos movimentos guardam semelhanças inegáveis. Além disso, uma atitude rebelde se desprende igualmente dos dois. No plano estético, a busca por inovações é constante e, em geral, motivada por um impulso de protesto e revolução.

A arte contracultural apesar de dialogar com a indústria de consumo ainda não é um produto pós-moderno, como é a arte Pop. Isso coloca-a exatamente como o último momento modernista antes da consolidação do pós-moderno. Por situar-se em um momento de transição, tal colocação pode ser um pouco nebulosa, mas é perceptível ao olhar atento. O próprio advento de “pastiches” da contracultura durante o pós-moderno reforça a idéia dela provir de um período anterior, moderno.

Assim, acreditamos termos comprovado a hipótese da contracultura ser um último suspiro modernista antes do pós-moderno tomar definitivamente o cenário artístico. Tal comprovação pode servir para valorizar a contracultura, tantas vezes criticada por causa de seus excessos e até descartada como um movimento artístico de menor importância. Por fim, ao observarmos com mais cuidado as diferenças entre pós-modernismo e contracultura, e associando esta última ao modernismo, veremos com mais detalhes a tênue fronteira entre modernismo e pós-modernismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADELMAN, Mirian (2001). O reencantamento do político: interpretações da contracultura. Curitiba: Revista de Sociologia e Política.

ANDERSON, Perry (2002). Afinidades seletivas. São Paulo: Boitempo Editorial.

__________, _____ (1999). As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

GINSBERG, Allen (2005[1956]). Uivo e outros poemas. Porto Alegre: L&PM.

GOFFMAN, Ken e JOY, Dan (2007). Contracultura através dos tempos. Rio de Janeiro: Ediouro.

JAMESON, Fredric (2001). A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Petrópolis: Vozes.

LONGO, Leila (2008). Estética & Comunicação. Rio de Janeiro: UERJ.

MARCUSE, Herbert (1968[1966]). Eros e civilização – Uma crítica filosófica ao pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

PEREIRA, Carlos Alberto M. (1986). O que é Contracultura. São Paulo: Brasiliense.

ROSZAK, Theodore (1972 [1969]). A Contracultura – Reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis: Vozes.



[1] ANDERSON, Perry.

[2] GIDDENS, Anthony.

[3] JAMESON, Fredric.

[4] Os dois momentos responsáveis por influenciar um milhão de jovens através do globo, por sua contestação de valores, rebeldia e uma nova forma de contestar: Woodstock e o Maio de 68 na França. O primeiro marcou o lado lúdico do movimento e continua sendo visto com saudosismo; muitas festas já tentaram reviver o espírito do festival. O evento na França, porém, teve influência redobrada para a contracultura tupiniquim, pois muitos intelectuais brasileiros estavam, por vontade própria ou não, exilados na Europa e puderam assistir aos efeitos demolidores do anarquismo francês, ou como diriam alguns dos próprios participantes da revolta, “marxismo tendência Groucho”, em referência ao comediante Groucho Marx.

[5] Ao analisar a contracultura, principalmente nos Estados Unidos, ROSZAK acreditava que este movimento de jovens rebeldes poderia transformar o mundo profundamente. Para este autor, a contracultura era a maior contestação do modo de vida ocidental já criado e a única esperança de acabar com a tecnocracia e buscar um modo de vida mais humano. Passadas algumas décadas podemos perceber que das teorias de ROSZAK sobre o futuro da contracultura, com exceção da crescente incorporação desta pela tecnocracia, nenhuma se concretizou. O mundo mudou, é certo, mas enfim a tecnocracia não foi destruída e, apesar de decadente, ainda mostra bastante fôlego, ao contrario da contracultura. Afinal nos parece é que se houve uma batalha entre a tecnocracia e a contracultura, a segunda nunca teve mesmo muita chance. Talvez não se deveria ter esperado outra coisa, pois os jovens da contracultura talvez não quisessem mesmo mudar o mundo, afinal podiam estar mais preocupados mesmo em “curtir um barato”.

[6] Entrevista concedida ao autor em 2007. Toninho Vaz é jornalista e autor das biografias de duas importantes figuras da cena contracultural brasileira: Paulo Leminski e Torquato Neto.

[7] GOFFMAN, Ken e JOY, Dan (2004).

[8] Idem.

[9] LONGO, Leila (2008).

[10] JAMESON, Fredric (2001).

[11] Idem.

[12] Ibdem.

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