Para melhor compreendermos a divulgação da contracultura feita na imprensa alternativa pode ser preciso uma análise aprofundada das primeiras páginas de publicações[1]. Neste estudo analisaremos dois periódicos: O Bondinho e Luta & Prazer. Sendo o primeiro publicado no ano de 1972 e o segundo de 1981 a 1983.
Apesar da diferença de dez anos entre uma publicação e outra, há também algumas semelhanças. Ao analisarmos em conjunto as primeiras páginas dos dois periódicos, podemos notar facilmente uma semelhança na trajetória evolutiva da questão visual nelas: nas primeiras edições há um predomínio de manchetes e chamadas para as matérias, porém, com o passar do tempo, os títulos são substituídos por imagens maiores e mais sofisticadas; sobrando espaço para apenas o nome da publicação, uma manchete e uma epígrafe.
4.1 O Bondinho: uma explosão visual
Ao observarmos a capa da edição do Bondinho de 17/2 a 1/3 de 1972, notamos o título da publicação centralizado no alto da página; uma manchete em letras grandes e três chamadas em letra menores , em relação à manchete; e uma fotografia de Walmor Chagas, ator, com a cara pintada como palhaço. As quatro cores e o papel de qualidade muito superior ao papel jornal contrastavam com o baixo preço da revista: apenas dois cruzeiros.
A primeira página da próxima edição do periódico (2 a 13/3 de 1972) apresenta uma composição semelhante. Uma diferença, porém, é claramente notável: há mais chamadas de matérias, em relação à edição anterior. A foto utilizada, do poeta Jorge Mautner, aparece junto com as bordas do filme e a imagem borrada dá a impressão que o filme está queimado. Remete, assim, à gíria “filme queimado”, significando uma imagem negativa.
A edição do Bondinho de 17 a 30/3 de 1972 tenta romper com o padrão criado nas duas edições anteriores. A misteriosa manchete, 2+2=5, assim como as chamadas, estão dentro de um cubo que, segundo sugestão impressa ali mesmo, pode ser cortado e transformado numa caixa para 45 palitos de fósforo. Bem ao jeito de um dos lemas da contracultura: “faça você mesmo”. A imagem é um desenho de Maria Bethânia, cantora. Apesar da radical estranheza visual desta capa, são mantidos dois signos: o título centralizado no alto da página e a tipologia de manchete e chamadas. Estas últimas só poderiam ser lidas rodando o jornal.
O Bondinho de 31/3 a 13/4 do mesmo ano apresenta, em uma foto grande que ocupa quase toda a página, Caetano Veloso, músico, então recém retornado do exílio, envergando estranha careta. Não há chamadas, apenas uma manchete: “Caretano”, apelido do músico. Para completar a ousadia gráfica marcante da primeira página desta edição, o título da publicação está invertido. Seria, portanto, necessário um espelho para lê-lo. Além disso, há um arco-íris emoldurando-o. São signos cuidadosamente escolhidos, compondo uma das mais belas e expressivas capas de toda imprensa contracultural brasileira.
Na edição de 14 a 27/4 de 1972 não há absolutamente nenhuma manchete ou chamada. A única informação escrita é o próprio título da publicação. Basta olhar para perceber a total preocupação dos realizadores desta capa com o visual, em detrimento das informações sobre o conteúdo, a começar pelo título, em cores fortes e com um efeito tridimensional, apesar de manter a mesma tipologia das edições anteriores. A página apresenta uma foto em preto-e-branco de uma mulher com uma enorme barba e fantasiada de coelhinha, sobre um fundo azul-escuro. É mais uma bela capa do Bondinho.
Dentre todas as edições do Bondinho, a de 29/4 a 13/5 é, sem duvida, a mais criativa. Isto porque esta edição além de ter duas capas, uma na frente e outra no verso, exigia que leitor virasse o jornal de cabeça para baixo. Para completar, havia um elaborado pôster com o número 69 no meio e que podia ser lido em ambas as posições. É um trabalho de difícil realização, feito assim apenas para deleite do leitor, e também dos seus realizadores.
A capa principal apresentava uma foto, um pouco escura, da cantora Gal Costa, além do título da publicação e da manchete em letras grandes: GAU. Esta era o nome antigo de Gal Costa, antes dela mudá-lo. Na foto, Gal aparece com o rosto levemente pintado e vestindo um macacão jeans. O resultado é uma imagem andrógina que, sem a manchete, poderia nem ser reconhecida como a cantora. Para completar, uma borda em laranja emoldura a edição. A capa secundária, feita em duas cores, causa imediatamente um estranhamento, pois não é escrita em português, mas sim em espanhol. Com o fundo vermelho, traz mãos em preto fazendo um símbolo misterioso e a seguinte manchete: “El Bondino presenta José Celso Martinez”. No canto inferior direito está o título da publicação, como uma marca, em português.
A primeira página da edição de 11 a 25/5 de 1972 também esbanja beleza gráfica. Numa foto em preto-e-branco, o psiquiatra José Angelo Gaiarsa está ajoelhado no chão. Algumas partes da foto foram coloridas, num efeito artístico. A marca do jornal vem no canto esquerdo e a manchete, estranhamente, na cabeça de Gaiarsa. A última página desse jornal apresenta um belo trabalho gráfico, um desenho com qualidade de pôster.
A qualidade gráfica do Bondinho como um todo e, principalmente, de suas primeiras páginas mostra uma preocupação com o visual capaz de alçar a publicação ao nível de arte. São edições detalhadas e muitas bem acabadas, em contraste com o baixo preço de venda. Os produtores queriam levar suas idéias às pessoas, em detrimento do lucro. A alta qualidade gráfica, entretanto, foi também o calcanhar de Aquiles da publicação, pois o alto preço de quatro cores em papel couchê, aliado a falta de anunciantes, levou a edição de junho de 1972 a ser a última.
4.2 Luta & Prazer: a chama do alternativo
A primeira edição do jornal Luta & Prazer, lançada em agosto de 1981, traz, no alto, título, editora e a epígrafe “Este jornal traz o novo, a vida. Experimente”. Estilizado, o caractere & do título tem a forma de um cobra. Estaria ele se remetendo à tentação e ao pecado que acompanham a cobra na sociedade judaico-cristã? A manchete não se preocupa com tabus, ou melhor, empenha-se em rompê-los. “Foi uma matéria um tanto controversa no seio da própria esquerda”, relata o editor geral do periódico, Dau Bastos. Aprovada e respaldada principalmente por uma “esquerda de tanga de crochê”. Ocupando quase toda a primeira página, uma foto em preto e branco, com uma clara representação de uma prática cara à contracultura, o sexo grupal, ou suruba.
A primeira página do segundo número apresenta, além da manchete “tribos urbanas”, uma grande quantidade de chamadas. O resultado é um pouco confuso. Assim como vimos em O Bondinho, os primeiros números priorizam a informação, enquanto os últimos, o visual. Em se tratando de Luta & Prazer, quem explica é o próprio editor de arte do jornal, Juliano Serra: “A partir do número 5, eu e Marcelo (Lippiani), que somos fotógrafos, assumimos a direção de arte, e naturalmente passamos a valorizar muito mais a informação visual”.
A primeira página da quarta edição, de dezembro de 1981, consegue ordenar as chamadas, resultando numa página limpa. A manchete aborda novamente a sexualidade: “Bissexualismo, o que é isso minha gente?”. Com cores fortes, esta edição captura a atenção do leitor para mostrar-lhe temas polêmicos. A epígrafe presente nas primeiras edições foi substituída nesta por “Esta edição está ótima. Arrepios”.
A edição 5 traz o desenho de uma grande boca com um enorme cigarro artesanal. A manchete “o que tá nas bocas”, apresenta um irônico duplo sentido: nas bocas dos usuários e nas bocas-de-fumo. A epígrafe leva a ironia adiante afirmando “este jornal está fumegante. Compre unzinho”. Esta página ainda traz algumas manchetes.
Na edição 8, um grande machado desenhado descansa sobre um tronco. A manchete “diálogos de geração” tem a mesma tipologia das duas chamadas: “eleição e papo de cartomante” e “temas malditos nos partidos políticos”. A cor de fundo, delimita e dá significado aos temas, pois se trata de diálogos entre gerações da esquerda e vermelho é cor da antiga União Soviética e a cor dos partidos socialistas e comunistas.
Um pai e um filho se beijam com afeto dentro de um intrincado trabalho fotográfico, na primeira página da edição 11 de Luta & Prazer. Não há chamadas, apenas a manchete “filhos de aquarius” em tipologia estilizada e caixa alta. Mais um tema caro à contracultura, a era de astrológica regida pelo signo de aquário.
Na primeira página da edição 12, há um desenho estilizado, em duas cores, de uma árvore cortada. Sobre o tronco morto nasce vida nova: cogumelos roxos brotam. A manchete “Sobre viver”, em caixa alta e dá a impressão de também expressar o sentido de outra palavra: sobreviver. Sem dúvida, uma bela capa.
Seguindo a linha irônica presente em outras edições, a primeira página do n° 13, traz vários bichos, quase um zoológico, indexados por números e uma legenda: “Nossas eleições”. Em baixo, a descrença bem-humorada do grupo se evidencia no título discreto: “Para colorir”. Como nos livros infantis onde, para trabalhar a habilidade artística das crianças, incentiva-se colorir desenhos já semiprontos.
A primeira página do Luta & Prazer n° 15 é um belo trabalho fotográfico, composto com várias fotos, sobre o qual há um desenho de sol sorridente. A manchete saúda o verão com tipologia estilizada e uma ambigüidade muito poética: “Vocês, verão”.
Um comentário:
MUITO OBRIGADA... AJUDOU MUITO NO MEU TRABALHO DE HISTÓRIA... OBRIGADA!!!!!!!! bj
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